segunda-feira, outubro 12, 2009

A pseudo-arte do cinismo

"Adj. 1. Relativo à seita filosófica dos que desprezavam as conveniências e fórmulas sociais." - Assim que o Michaelis começa descrevendo o vocábulo. Tal seita fora fundada por um discípulo de Sócrates 400 anos antes de Cristo e tinha como princípio escarnecer e desprezar o estilo de vida de outros que não compartilhavam do mesmo desprendimento.

"Imoral e impudico"- os santos exclamavam a plenos pulmões diante das obras de Nelson Rodrigues, diabo lúcido e impassível, ou anjo pornográfico, como o próprio se descreveu. Um gênio do dois mais dois que radiografava a alma das mocinhas e amaldiçoava a felicidade eterna dos noivinhos cegos pelas historinhas infantis onde A vida como ela é vive entre os monstros da floresta, enfeitiça maçãs e alimenta seus cães com corações partidos. Dizem que nasceu velho, com pouca boca e quatro olhos. Além de assustar incautos que ousavam tomar nota de suas obras, apoiara a ditadura, escrevera sobre mães que idolatram os filhos, pais que os renegam, a empregada doméstica estereotipada, a força do dinheiro e assuntos afins, poesia de asfalto que excita e apavora.

Nos dias em que não se sabe se o amor está superestimado ou deveras muito banalizado, só tem consciência que cresceu quem já se viu em meio a uma tragédia rodrigueana com direito a amor louco, traições, desilusões e condescendências.

"2. Que ostenta princípios e atos imorais." - Continua o dicionário, dissecando o âmago dos seres humanos, que ao atingirem a maturidade entendem sua natureza e aprendem a viver como cães selvagens. Sim, que inventem outro vocábulo para o fiel animal que apesar de agir por instinto, beija a mão que lhe afaga: de origem grega, kynikós, relativo à cães, também é de onde deriva o adjetivo "cínico".

Tome a pílula vermelha do cinismo e siga o coelho até o final da sua vida ilusória. A infelicidade é como uma bactéria, cada dia se descobre novos lugares em que ela se prolifera apesar do ambiente totalmente inóspito, seja dentro de um vulcão, seja na exosfera, dentro de um casamento feliz ou de uma vida abonada.

A ignorância é sim uma benção, mas a lucidez é um caminho sem volta. Muitos são os nostálgicos que recorrentemente lembram dos bons tempos da simplicidade da alma, tentam disseminar o niilismo, pensam que conseguirão se enganar se virem alguém concordar que é possível voltar a ser cru e inocente. "Bendito seja eu por tudo o que não sei, gozo tudo isso como quem sabe que há o sol", disse Fernando Pessoa.

Na obra "Aprendendo a viver" de Sêneca, há uma parte especial em que este discorre sobre o erro capital dos que insistem em mensurar a felicidade:

Vou dizer-te qual a origem donde provém este erro: da ignorância de que o que caracteriza a vida feliz é a sua unidade. É a qualidade, não a dimensão, que grangeia à vida esse supremo estado. Por isso mesmo, a vida feliz é simultaneamente longa e breve, difusa e limitada, disseminada por muitos lugares, por muitas áreas, e concentrada num único ponto. Quem avalia a felicidade em números, medidas e partes está-lhe por isso mesmo roubando o que ela tem de melhor. E o que há de melhor na felicidade do que a sua plenitude? Imagino eu que toda a gente pára de comer e de beber quando está saciada. Este come mais, aquele come menos; mas que importa isso se ambos se sentem satisfeitos? Este bebe mais, aquele bebe menos; mas que importa isso se ambos mataram a sede? Este viveu mais anos, aquele viveu menos; isso não tem importância desde que a provecta idade do primeiro e os breves anos do outro os tenham feito igualmente felizes. Aquele a quem tu chamas "menos feliz" não é de fato feliz, porquanto este predicado não é susceptível de conhecer gradação.

Aos cônscios protagonistas do dia-a-dia resta a loucura e a incessante busca de colecionar efêmeras gotas de felicidade, porque, afinal, "isto é Bossa Nova, isto é muito natural".

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